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sexta-feira, 16 de abril de 2010

ENTRE ASES E CORINGAS

Ruy Castro*


Moyseis Marques tem apenas trinta anos, mas sambistas como ele não devem ser medidos por suas idades cronológicas. Como continuadores de uma tradição, têm a idade dessa tradição. Parecem trazer dentro deles a herança, o eco, a lembrança de rodas de samba ancestrais, em remotas biroscas do Estácio ou da Cidade Nova, do tempo em que as coisas estavam realmente começando e seus praticantes se chamavam Newton, Ismael, Brancura, Bide ou Marçal. A filiação musical de Moyseis e sua identificação melódica e rítmica com o Estácio parecem tão nítidas – mesmo que por [ilustre] via de Elton Medeiros, Chico Buarque ou Luiz Carlos da Vila – que, estivessem vivos hoje, Chico Alves e Mario Reis já o teriam gravado.


Ao mesmo tempo, numa época em que, em mãos alheias, a música parece encolher para dar lugar a línguas foragidas de Babel, como o funk, o rap e a eletro-pancadaria, Moyseis canta valores como cozinhas ladrilhadas, pinga para o santo e feijão para os amigos – como em “Panos e planos” [dele, em parceria com Luís Carlos Máximo]. Anacrônico? Não. No plano do samba, o tempo não passa e certos valores são constantes. E quando alguns, de repente, dão as costas ao Rio pelos mercados de fora, Moyseis toma o metrô para Vicente de Carvalho e vê pela janela o desfile de ases e coringas do Carnaval: “Surgiram novos cantores/ Poetas, compositores/ Alunos, professores/ De bar, de criação/ Que esplendor!” – como em “Cartas de metrô”, sua réplica ao fabuloso “Subúrbio”, de Chico Buarque, que ele também canta aqui e, no mano a mano, vê-se que a sua não fica a dever à viagem de trem do mestre. Não há bairro do Rio que não tenha suas próprias reservas de samba, e sábio será quem levar sua música para se abastecer delas.


Desde seu primeiro CD, lançado há dois anos, também pela Deckdisc, Moyseis firmou seu lugar no território mais concorrido e disputado do panorama musical brasileiro: a noite da Lapa. Todas as quartas-feiras, ele está no Carioca da Gema – e quem passa pela rua, ouve o som que vaza pelas janelas e é informado de que não pode entrar porque lá dentro não cabe mais ninguém, sente-se roubado de alguma experiência vital. Ao mesmo tempo, a Lapa é ciumenta de seus expoentes e não gosta que eles se esbaldem fora de suas fronteiras. Foi assim com Teresa Cristina, que lutou para se ouvir no resto do mundo, e tem sido assim também com Moyseis. Mas isso pode mudar, agora que sua irresistível “Pretinha, jóia rara” – “Pretinha, jóia rara/ Treme as cordas vocais/ A paz estampa a cara/ Acalentando os casais/ E geme o peito aflito/ Do perito rapaz/ Meu canto é mais um grito/ A preta tá com cartaz...” – acaba de ser incluída na trilha da novela Caminho das Índias, cuja autora, Gloria Perez, é dos que vão ouvi-lo com freqüência na Lapa.


Das treze faixas de “Fases do coração”, oito, entre as quais a faixa-título, têm o violão ou caneta de Moyseis, em parceria com craques como Edu Krieger, Zé Paulo Becker ou Luís Carlos Máximo, e todas parecem feitas para o seu estilo, jeito ou voz. Nesse sentido, é um disco mais autoral que o de estréia, embora Moyseis não abra mão de cantar os sambas que admira e de autores com quem se identifica – como dona Ivone Lara e Delcio Carvalho, em “Sonho e saudade”, Evandro Lima e Marquinho China, em “Lá se foi meu verão”, e Toninho Geraes e Roque Enrico, em “Mágoa”.


Mas nada supera seu amor por Luiz Carlos da Vila, cujo “Oitava cor” [com Sombra e Sombrinha] é uma das obras-primas da música brasileira dos últimos anos [“Pois é, assim é o nosso amor/ Do arco-íris a oitava cor”] e talvez a faixa mais emocionante do disco. A morte de Luiz Carlos, em 2008, abalou todos que o conheceram, de show, de disco ou de amizade, mas seu impacto sobre Moyseis foi enorme porque havia uma coisa ali de mestre e discípulo. Há também algo de Luiz Carlos da Vila no som de Moyseis e, se ninguém está a salvo de influências, que pelo menos sejam as mais nobres. Moyseis não podia ter escolhido melhor modelo.


A admiração por um artista pode ser medida também pela qualidade dos músicos que o acompanham – e a turma convocada para este disco pelos arranjadores Alessandro Cardoso, Henrique Band e Paulão Sete Cordas é um escrete que não se reúne para qualquer um.


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*RUY CASTRO é autor de Carmen – Uma biografia (a vida de Carmen Miranda),Chega de saudade (sobre a Bossa Nova) e muitos outros livros, quase todos pela Companhia das Letras.


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